No leito de morte lembrava-se das conquistas, das lutas, das ruas, dos confrontos com os militares. Não entendia como se tornou impotente. Somente o ego ainda lutava. A única luta que o corpo travava, era para se manter vivo. Não podia admitir que o filho se misturasse com aqueles safados da direita comprada. Volta e meia, berrava em delírio convocando os estudantes:
-Em frente, não baixem a guarda!
Viveu em função dos ideais esquerdistas aprendidos na universidade. Mesmo quando serviu ao exército, era disciplinado constantemente, quando flagrado em cima das mesas, propagando os ideais socialistas aos soldados. Não se importava com a farda, com as punições, nem com os superiores. Comemorou efusivamente ao ser expulso de lá, mesmo estando todo quebrado.
Seu neto ficava ao lado da cama ouvindo as longas histórias do avô, e mesmo sendo menino, já tinha afinidade com a esquerda, com o rubro e com os discursos emocionantes.
O menino contou ao avô que levara um tapa na boca do pai ao dizer que queria ser socialista. E o velho, perdeu-se nas lembranças ao recordar da surra que deu no filho quando ele se filiou num partido de direita. Era um dado viciado, um círculo vicioso. Sentia naquele momento um orgulho do neto, ao imaginá-lo nas ruas, como ele liderando um grupo com pedras na mão.
-Vovô, por que parou a história? - o menino tinha sede por ouvir o avô, que não respondeu nada, ficando estático olhando fixamente pela janela, enquanto a fábrica soltava aquela grande cortina de fumaça.
Num súbito esforço, o velho ergueu sua cabeça e segurando a mão do menino, olhou-o com amor e esperança, e numa fusão de pensamentos entre o passado e o presente, entre o real e o fantástico, a verdade e a possibilidade, gritou como nunca:
-Abaixo a repressão! Às ruas, às ruas, às ruas!
Tudo se aquietou. Inclusive o coração do menino. O velho soltou sua mão levemente, e o abandonou para sempre.