DESLIGUE O COMPUTADOR E VÁ LER UM LIVRO

quarta-feira, 25 de julho de 2012

antes dos 15 anos

"Jamais saberei quem sou, até descobrir as histórias daqueles que vieram antes de mim".

Eu sempre percebi a maneira como ele me olhava. Antes achava que era coisa da minha cabeça. Tio Deco não tinha segredos comigo. Quando se é criança, os tios sempre são mais legais que os pais. Ainda mais um tio igual a ele - Carro legal, me botava no colo pra dirigir. E eu ia no volante dando pulinhos pra enxergar pelo parabrisas. Criança não vê maldade. O apartamento dele é que era legal. Mamãe me deixava passar uma semana das minhas férias. Tinha videogame, um aquário em cima da tv e microondas. Eu sentava num banco e ficava vendo o saco de pipocas girar e crescer. Uma vez quebrei um porta-retrato que tinha a foto de uma moça bonita, loira, que mandava beijos. Ele não brigou nem nada. Mas a tristeza que ele sentiu me deixou envergonhada. Nem pipoca quis aquele dia. Fiz até um cartão pedindo desculpas e ele sorriu.

Meu pai começou a reclamar da minha relação com tio Deco. Ficava vermelho de ciúmes quando me ouvia dizer que o tio Deco tinha me levado no parque, no cinema, me dado o disco que eu tanto queria. Na verdade, eu não me achava parecida com meu pai. Ele só pensava na empresa, em dinheiro, em vender. O jantar mais parecia uma reunião de negócios. Minha mãe concordava com olhos, com a cabeça, sem interesse. Já tio Deco não falava de trabalho quando estava comigo. Eu sabia que ele era fotógrafo, que viajava trazendo fotos e presentes do mundo inteiro. Já tinha prometido. Meu presente de 15 anos, uma viagem pra qualquer lugar do mundo.

Eu nunca disse pra ninguém, mas queria que tio Deco fosse meu pai.

Papai era o irmão mais velho. Quando vovô morreu, ficaram só ele e meu tio. A barra pesou pro lado do meu pai. Sem mãe, sem pai, tio Deco só tinha ele. Meu pai trabalhava de dia entregando documentos, fazendo serviço de banco, e estudava a noite pra terminar a faculdade. Nessa época, tio Deco fazia o ensino médio. Meu pai não o deixava trabalhar, dava conta do recado sozinho, pro Deco poder estudar e seguir os passos do irmão. Mas ele estava em outra.

Quando brigavam, meu tio ameaçava sair de casa e não voltar mais, girar o mundo, conhecer pessoas interessantes, esquecer que tinha irmão pra pegar no pé. Meu pai dizia que fosse, que quebrasse a cara, que nunca mais voltasse, mas depois da briga se trancava no quarto, chorando, com medo que tio Deco fosse de verdade. Não queria perder o que podia chamar de família.

Meu pai e minha mãe se conheceram e começaram a morar juntos e tio Deco continuava ali. Não era incomodo pra ninguém. Minha mãe o adorava: "que fofo o Dequinho, como irmão pra mim!". Meu pai ficava feliz em vê-los se dando bem. Eram de novo uma família.

Meu pai, agora formado, sustentava os dois. Minha mãe estudando e meu tio não queria saber de faculdade, "só por enquanto", dizia ao irmão pra acalmá-lo. Começou um curso de fotografia e viu que era sua praia. "É isso, mano, vou ser fotógrafo e dos bons!". Meu pai dizia que aquilo não era profissão de verdade, que fizesse faculdade como ele, como gente de bem, que sabe o que quer. Tio Deco não queria saber.

Minha mãe já não olhava meu tio como antes. Era diferente e ele sabia disso. Nada de olhar fraternal e ele sentia isso. Meu pai nunca soube o que acontecia com os dois quando ele saía pro trabalho. Nem eu posso pensar nisso. 

O clima da casa mudou quando minha mãe contou que estava grávida. Sorria pro meu pai dizendo que era milagre, que a santa tinha ouvido suas preces! Meu pai que era estéril, achava muito milagre pra uma mulher que nem rezava. Meu tio já não era o mesmo. Não podia olhar nos olhos do meu pai e foi nesse tempo que ele mostrou as passagens pra São Paulo, "tentar a sorte na vida. Um amigo vai descolar uns trabalhos em uma revista, é pouca grana, mas é só o começo". E foi assim que a família se desfez. 

Sempre achei meu pai um caretão. Tinha um pouco de vergonha dele. Queria um pai descolado como o tio Deco. Que pelo menos não fosse careca e que usasse um jeans de vez em quando. Nunca disse nada disso pra ele. As coisas começaram a prosperar pro meu tio em São Paulo. Fez faculdade de fotografia só pra orgulhar o irmão. As primeiras lembranças que tenho do meu tio são dessa fase, do apartamento legal e carro mais cheiroso que o do meu pai. E eu, segurando feliz aquele volante.

Eu tinha quase 15 anos quando tio Deco ficou doente. Foi a primeira vez que vi alguém com câncer, isso não era comum nos anos 80. Corremos pra São Paulo, mamãe e eu. Papai iria fim de semana, depois de resolver as coisas da empresa, sempre a empresa.

Ele estava magro e carequinha, me assustei quando o vi. Mesmo assim disfarcei e o abracei entregando o cartão que havia feito. Minha mãe deu um beijo carinhoso no seu rosto, e depois brigou com ele, "Doente há 4 meses, por que não avisou antes?". Ele chorava olhando pra mim e dizia que não queria incomodar meu pai que era tão ocupado, que a quimioterapia estava dando certo, que tudo daria certo. Fiquei olhando pras fotos na parede do escritório enquanto eles conversavam. A coleção de câmeras, o mapa mundi com alfinetes vermelhos em todos os países que ele havia fotografado, contei 22. Minha mãe chegou chorando, tio Deco queria conversar comigo no quarto, "Me perdoa, te amo muito".

Foi nessa tarde de sexta-feira que descobri, pelo meu tio, toda essa história da minha família. Meu tio chorava muito dizendo que amava meu pai, que amava minha mãe, e que me amava, não com amor de tio. Minha mãe entrou no quarto. Chorava muito também, eu estava em choque. "Seu pai nunca soube de nada, acreditou enfim no milagre da santa. Se você quiser contar a ele, é sua decisão".

Depois dessa conversa, meu tio respirava aliviado, estava sem fardo, sem espinho na carne. Segurando forte a minha mão, ele morreu naquela noite. Nunca pensei em vê-lo morrer assim. Peguei o telefone e liguei pra empresa, ele atendeu: "Alô, alô!", e eu chorava, soluçava. "O que aconteceu, quem está falando?", "Tio Deco acabou de morrer, preciso de você aqui, Papai!".

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

"A aranha na janela mal sabe que está indo a Ouro Preto."

Trem, Mariana/Ouro Preto - MG.

10 de julho de 2011.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

a triste partida

Virou o último gole da cachaça, jurou o último amor pela Teresa e deitou-se na rede esperando a boa hora.

A brisa balançava a rede e ele olhava pra longe, pro nada, imóvel. 'Canta aquela música pra mim, teresa?'. Voz doce que ela tem.

"O sol bem vermeio nasceu muito além. Meu Deus, meu Deus...". Voz doce da teresa, brisa, rede. 'Segura forte na minha mão, teresa'.

A voz de teresa era carregada de dor. Dor que encanta, de tão sincera. A cantiga deixava o seu peito apertado. Olhar perdido no horizonte.

"Oiando pra terra, seu berço, seu lar. Meu Deus, meu Deus...". Respiração ofegante. 'Você lembra como a gente foi feliz, teresa?'.

Agora teresa encarava o horizonte. Olhar fixo, como se o crepúsculo fosse tela de cinema passando o filme da sua vida.

Foi a primeira vez que ele jurou amor pela teresa. Pegou na sua mão e propôs fuga. Teresa não exitou e deixou o casamento para trás.

Lembra como você derrubou os capangas do meu pai, um por um? Teresa se orgulhava do marido. Naquele dia ele prometeu nunca deixá-la sozinha.

As lembranças invadiam a mente de teresa, sem permissão. E ela chorava, ria, cantava, tudo ao mesmo tempo.

Sentada na cadeira ao lado da rede, teresa podia ver os cabelos brancos dele refletidos pelo pôr-do-sol. Ele, calado e imóvel.

"Se o nosso destino não for tão mesquinho, ai pro mesmo cantinho nós torna a voltar...". Teresa derramou lágrimas quando ele soltou sua mão.

Foi a primeira vez que ele quebrou uma promessa, deixando teresa sozinha para sempre.

"E assim vão deixando com choro e gemido, do berço querido, céu lindo e azul. Meu Deus, meu Deus".

(m.queiroz / l.gonzaga)

*poema escrito no twitter de 02 de julho a 21 de setembro de 2009. Inspirado na música 'a triste partida' de luiz gonzaga.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

ninguém usa paletó marrom

Eu nunca havia reparado nele. Um tempo depois fiquei sabendo que ele trabalhava na repartição há doze anos. Coisa maluca, sumir assim, sem fazer falta. Carregando uma pilha de arquivos no peito, escondia o rosto. Usava paletó marrom e jeans azul desbotado todo dia. A mesa, uma barreira de guerra. Hoje acho que era de propósito - acostumado a não ser notado por ninguém, só olhava pra baixo. Digo isso, pois todo mundo lembra do carequinha de quarenta anos, mas da aparência, ninguém se recorda.
Um dia faltou e ninguém sentiu falta. Nem chefe, RH ou porteiro. Imagino ele em casa, ao lado do telefone, sentado no sofá e esperando alguém telefonar pra dizer: "Não vem trabalhar, Cardoso?". Percebeu que era invisível. Trabalhou mais dois dias e faltou outros três. O telefone de casa continuou mudo. Cara, deve ser difícil perceber que a gente não faz falta! A Ivone do RH me disse que passou pela mesa dele e vendo a pilha de papel, achou que estivesse lá e deixou o contra-cheque.
Agora me lembro, uma vez ele me perguntou as horas. Apressado, não respondi, mesmo usando no pulso o relógio novo que ganhei do pessoal da repartição no meu aniversário - presente que ele deve ter ajudado a pagar. É triste! Era o décimo segundo ano dele no banco, e o paletó marrom, jeans desbotado e a carequinha, nunca fizeram diferença pra ninguém.
Depois de nove dias ausente, alguém foi brigar com o cara que ficava na mesa do canto. As pilhas de arquivos já estavam altas demais. Na cadeira vazia, o bilhete rabiscado:

"Não sei quanto tempo já passou. Ass: João Cardoso."

O bilhete foi parar com a Ivone. O gerente não lembrou quem era o tal Cardoso. Pela primeira vez o telefone dele tocou, mas ninguém atendeu. Decidiram procurá-lo no apartamento. O porteiro mal se lembrava quem era o cara do 402: "Ah, é um carequinha?".
A porta do 402 não estava trancada. No corredor, o crachá do banco caído no chão. O mau cheiro invadiu minhas narinas. O porteiro ficou na porta. Um sol estranho entrava pela janela da sala. A TV fora do ar. Vi uma poltrona e a orla de um roupão riscado. O desgraçado morreu de olho aberto e me encarava. Encostado na janela, chorei. Sem o paletó marrom, não soube dizer se aquele defunto era mesmo o Cardoso.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

amor no lar

- é, eu sei...
- sabe mas não muda!
- ...
- sempre em segundo plano. não era isso que eu queria...
- é, eu sei...
- tu acha que eu precisava disso? que não tava bom na casa da minha mãe?
- ...
- minha vida tá uma droga!
- ...
- e sabe por culpa de quem?
- é, eu sei...
- sabe mas não muda!
- ...
- quando a gente namorava era diferente! presente pra cá, meu amor pra lá! onde foi parar tudo isso?
- ...
- feliz é a minha irmã que ficou solteira, independente. tá até mais bonita!
- é, eu sei...
- como assim, sabe? tu anda reparando na minha irmã?
- ...
- se não bastasse não me valorizar, fica olhando pras outras? isso eu não admito!
- ...
- tenho deixado de cuidar de mim mesma, pra te dar atenção! tô até mais gorda...
- é, eu sei...
- ah, seu cretino! vc não me merece! eu que te amo tanto! que faço todos os seus gostos! é isso que recebo em troca?
- ...
- tá rindo de que? para de ler essa porcaria de livro e olha pra mim quando eu falo!
- você conhece dalton trevisan? é que tem um haicai hilário que ele escreveu!
- eu não quero saber disso...
- o nhô joão é feliz por ter uma catarata no olho que impede de ver a sua mulher!
- e o que tem de engraçado nisso?
- bem que eu queria uma catarata dessa!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

quando mamãe sai de casa

Tem barulho lá em cima. É só mamãe sair pra começar a gritaria. Se trancaram no quarto. Paulinha e Jorge de novo brincando sem roupa. Mamãe tem dito que faz calor até pro diabo. Dentro do quarto deve ser ainda mais quente. Ela é corajosa: rancar roupa na frente dos outros. Eu só tiro roupa pra mamãe, no banho! O Jorge é estranho, faz cócegas na minha irmã. E ela agora deu pra gostar disso. Quando eu faço, levo tapa. Acho que o calor tá diminuindo, tão se abraçando agora. Ele e ela na cama. Paulinha agora tem boca suja. Se a mamãe descobre que ela anda falando palavrão enquanto brinca, briga com os dois. Ela tá gritando, com dor. Ele deve tá machucando ela, brincadeira de mau gosto. "Abre a porta, Jorge. Se machucar minha irmã eu te arrebento". Sou valente. O segundo mais forte da 3º série.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Concurso Literário Revista Piauí


Hoje é um dia muito especial!
O conto "Edifício Três Marias" foi o grande vencedor do último Concurso Literário da Revista Piauí, Editora Abril. A revista comemora 3 anos e, é um grande prazer participar dessa festa.

Acesse o site da
Revista Piauí.


quarta-feira, 16 de setembro de 2009

edificio três marias

Terça-feira, 7:43am, Av. Brasil: "aí eu peguei e liguei na hora...", "parei de fumar semana passada e...", "acredita que engordei outra vez...", "alí ninguém presta, mesmo...", "comprei na liquidação, mas não conta...", "isso! na gaveta de baixo, abre ela...". As pessoas passavam por ele como se não existisse. Usavam roupas coloridas, uniformes, casacos, decotes. Era como se não estivessem na mesma estação, na mesma cidade, na mesma época. Ele seguia em linha reta, com um olhar altivo. Passou pela faixa de pedestres, banca de jornal, banco itaú, mercantil e bradesco. A cada minuto batia a mão no peito conferindo se a carta estava no bolso. Havia tomado banho decente e se barbeado após semanas. No pescoço, uma pequena cicatriz: culpa da navalha e da falta de prática. Os sapatos estavam engraxados e combinavam com a camisa de linho. Dobrou à direita na Getúlio Vargas e quase pisou nuns pombos que bicavam a calçada. Parou por um momento e olhou pra cima. O céu, já azul, era invadido por algumas nuvens. Ao redor, alguns prédios e letreiros de publicidade. À frente, a catedral. Era bem alta, pena não ter janelas. Andou mais alguns passos e entrou no Edifício Três Marias. Disse ao porteiro que iria à radio e entrou no elevador. Avaliou que 8 andares eram suficientes. Conferiu a carta no bolso da camisa e apertou o botão do 8º. O elevador era barulhento. O Edifício, um dos mais antigos de Maringá, década de 1960. Saltou no andar escolhido assoviando as notas de Lady Writer, o andar vazio. Verificou as janelas, todas fechadas. Olhou a cidade de cima e achou antipática. Tomou impulso no corredor e pulou contra a vidraça, depois contra o vento e caiu em cima dos pombos.
Quarta-feira, 7:44am, Av. Brasil: "não soube? foi ali pertinho, na getúlio...", "rapaz novo, nem 40 anos...", "é verdade! o vidro do carro quebrou com o impacto...", "deve ser mais um desses drogados...", "parece que era escritor, mas ninguém conhece...", "tinha uma carta no bolso, mas ninguém entendeu a letra...".

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

remoto controle

4, 6, 8, 10, 13, fora do ar, 23, 25, fora do ar.
4, tiro, 8, 10, pastor, fora do ar, 23, menina com maquiagem esquisita, fora do ar. Bosta de televisão! O médico avisou que depois dos 70, insônia era comum. A menina da maquiagem até que tinha as pernas grossas, mas dançava feito bêbada. Acendeu um cigarro e fumou numa tragada só. Ai, se a filha descobrisse que estava fumando, tomava castigo. Velho não serve pra nada. Só pra tomar sopa, remédio e castigo. Ele sabia se vingar: dia desses ficou tão nervoso, que se mijou inteiro de propósito. Lalinha o xingava lá do tanque enquanto lavava suas calças e ele ria tanto, que se engasgava. Ria, tossia e engasgava.

4, tiro e pneu queimando, jô, 10, pastor segurando copo d'água, fora do ar, 23, música insuportável, fora do ar. Ele prometeu se comportar e parar de fumar quando ela ameaçou vender a tv. Pura implicância da Lalinha, dizia quando alguém perguntava. O único que se importava com o pai era o Jorge, filho mais velho. Toda vez que Lalinha ranhetava, já ia o velho pegar telefone pra ligar pro Jorge. Ele nunca atendia as ligações e lá vinha a capeta da Lalinha com a história de que o Jorge nunca atendia por não querer mais saber do pai. Mas ele sabia que o filho tinha seus negócios e qualquer dia fretaria uma Perua, e buscaria ele e a tv pra morar no seu apartamento. O velho iria na caçamba da Perua, sentindo o vento esvoaçar os poucos cabelos que lhe restavam. O filho, preocupado, daria ordem que ele segurasse com força pra não cair.
4, jornal, um beijo do gordo, 10, pastor gritando noutra língua, fora do ar, 23, menina de cabelo rosa e brinco na boca, fora do ar. A luz começou a entrar sem pressa pela cortina da sala. Controle-remoto caído no chão, passos na escada, tv fora do ar, Lalinha chorando em desespero. O velho enfim conseguiu dormir.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Velório do tio nelson

Velório é um saco. Ainda mais quando é de parente. Só vi o tio uma vez no natal, nunca mais. Pra quê velório? Morreu, enterra! Bando de falsos chorando em cima de corpo gelado. Se era tão querido assim, por que colocar no sanatório? Cretinos. Convulsão é o escambau! Morreu foi de tristeza. Solidão. Recebeu só uma visita num aniversário - meias e cuecas. Rasgou tudo. Achei bom. Ficaram tão bravos que nunca mais foram. Depois que o vô morreu, virou essa bagunça. Duvido que não internaram ele só pra ficar com a fatia da herança. Na hora de descer o caixão, a última homenagem: discurso do irmão mais velho – Cinco minutos de pura falsidade. Não agüentei: “Se ele tá morto a culpa é de vocês!”. Meu pai me virou um tapa na boca. Cheguei em casa, outra surra. Família a gente não escolhe. Se pudesse, escolhia o tio Nelson.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A mulher que remelava

Jacira nasceu feia, de olho murcho. Quando chorava – noite sim, noite não – o olho murcho remelava. O marido só namorava de luz apagada. Depois do amor, Jacira roubava dinheiro da carteira pra jogar no bicho. Escolhia o bicho de acordo com o humor: quando estava vaidosa, jogava no avestruz, gato; quando o marido fazia agrado, jogava cavalo, touro, leão.
No aniversário de casamento comprou camisola nova, tomou banho de mangueira, passou batom vermelho na boca rachada e sombra roxa no olho que não remelava. Apagou a luz do quarto e deitou-se ensaiando pose sensual no espelho. Ficou de ladinho escondendo as varizes da perna com a mão. Olhou pro espelho novamente e se achou parecida com uma leitoa. Prometeu jogar porco no bicho. O marido não chegava. A perna direita dava câimbras. As banhas transpiravam deixando a camisola molhada. A remela do olho murcho escorreu até a boca e se misturou com a baba no travesseiro. Dormiu.
O marido abriu a porta da sala e ouviu o ronco que vinha do quarto. Decidiu nem chegar até lá e ficou pelo sofá.
Jacira acordou pela manhã com o olho tapado de remela. Levantou-se e viu o marido dormindo na sala. “Cretino”, pensou. Abriu a carteira e pegou o dinheiro do vício. Abriu novamente e pegou mais. Calçou chinelo de dedo e foi pra rua de camisola e olho-só. Pensou no marido e jogou meio a meio: burro e veado.
Se percebesse seu reflexo na vitrine, ganharia uma bolada. Bicho certo era o porco – de olho murcho e remelento.

segunda-feira, 9 de março de 2009

domingo, 7 de dezembro de 2008

O elevador

Valtinho entrou no elevador e cumprimentou com gentileza a doce senhora que carregava sacolas de verduras. Apertou o botão do 17° e lhe deu um sorriso. Gostou de ver a dentadura da velha meio solta na boca e lhe sorriu novamente. A senhora não poupou dentes e lhe abriu um sorriso deixando metade da dentadura pra fora da boca. Valtinho esticou a mão pra que a ponte da velha não caísse no chão, mas ela chupou a dentadura de volta e lhe mandou um beijo. Valtinho achou engraçado e retribuiu a gentileza. A velha soltou as sacolas da mão esquerda e beliscou sua coxa. Valtinho suou frio. A velha subiu um pouco a mão e alisou sua nádega. Ela soltou as sacolas da mão direita e abriu dois botões do vestido florido. Valtinho se encurralou na parede. Ela pegou uma folha de almeirão e começou a abaná-lo. Valtinho fechou os olhos. A velha abriu um botão da camisa dele e deu mordidinhas no seu peito. Valtinho se arrepiou e quando abriu os olhos viu a língua da velha em direção à sua orelha. Clamou por um milagre e a porta se abriu. Era o 17° andar. Ele saiu apressado do elevador e ganhou mais um beliscão. Olhou pra trás e viu a velha equilibrando a dentadura em cima da língua. Que pesadelo. Valtinho descobriu que preferia escadas.