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terça-feira, 13 de setembro de 2011

a triste partida

Virou o último gole da cachaça, jurou o último amor pela Teresa e deitou-se na rede esperando a boa hora.

A brisa balançava a rede e ele olhava pra longe, pro nada, imóvel. 'Canta aquela música pra mim, teresa?'. Voz doce que ela tem.

"O sol bem vermeio nasceu muito além. Meu Deus, meu Deus...". Voz doce da teresa, brisa, rede. 'Segura forte na minha mão, teresa'.

A voz de teresa era carregada de dor. Dor que encanta, de tão sincera. A cantiga deixava o seu peito apertado. Olhar perdido no horizonte.

"Oiando pra terra, seu berço, seu lar. Meu Deus, meu Deus...". Respiração ofegante. 'Você lembra como a gente foi feliz, teresa?'.

Agora teresa encarava o horizonte. Olhar fixo, como se o crepúsculo fosse tela de cinema passando o filme da sua vida.

Foi a primeira vez que ele jurou amor pela teresa. Pegou na sua mão e propôs fuga. Teresa não exitou e deixou o casamento para trás.

Lembra como você derrubou os capangas do meu pai, um por um? Teresa se orgulhava do marido. Naquele dia ele prometeu nunca deixá-la sozinha.

As lembranças invadiam a mente de teresa, sem permissão. E ela chorava, ria, cantava, tudo ao mesmo tempo.

Sentada na cadeira ao lado da rede, teresa podia ver os cabelos brancos dele refletidos pelo pôr-do-sol. Ele, calado e imóvel.

"Se o nosso destino não for tão mesquinho, ai pro mesmo cantinho nós torna a voltar...". Teresa derramou lágrimas quando ele soltou sua mão.

Foi a primeira vez que ele quebrou uma promessa, deixando teresa sozinha para sempre.

"E assim vão deixando com choro e gemido, do berço querido, céu lindo e azul. Meu Deus, meu Deus".

(m.queiroz / l.gonzaga)

*poema escrito no twitter de 02 de julho a 21 de setembro de 2009. Inspirado na música 'a triste partida' de luiz gonzaga.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

ninguém usa paletó marrom

Eu nunca havia reparado nele. Um tempo depois fiquei sabendo que ele trabalhava na repartição há doze anos. Coisa maluca, sumir assim, sem fazer falta. Carregando uma pilha de arquivos no peito, escondia o rosto. Usava paletó marrom e jeans azul desbotado todo dia. A mesa, uma barreira de guerra. Hoje acho que era de propósito - acostumado a não ser notado por ninguém, só olhava pra baixo. Digo isso, pois todo mundo lembra do carequinha de quarenta anos, mas da aparência, ninguém se recorda.
Um dia faltou e ninguém sentiu falta. Nem chefe, RH ou porteiro. Imagino ele em casa, ao lado do telefone, sentado no sofá e esperando alguém telefonar pra dizer: "Não vem trabalhar, Cardoso?". Percebeu que era invisível. Trabalhou mais dois dias e faltou outros três. O telefone de casa continuou mudo. Cara, deve ser difícil perceber que a gente não faz falta! A Ivone do RH me disse que passou pela mesa dele e vendo a pilha de papel, achou que estivesse lá e deixou o contra-cheque.
Agora me lembro, uma vez ele me perguntou as horas. Apressado, não respondi, mesmo usando no pulso o relógio novo que ganhei do pessoal da repartição no meu aniversário - presente que ele deve ter ajudado a pagar. É triste! Era o décimo segundo ano dele no banco, e o paletó marrom, jeans desbotado e a carequinha, nunca fizeram diferença pra ninguém.
Depois de nove dias ausente, alguém foi brigar com o cara que ficava na mesa do canto. As pilhas de arquivos já estavam altas demais. Na cadeira vazia, o bilhete rabiscado:

"Não sei quanto tempo já passou. Ass: João Cardoso."

O bilhete foi parar com a Ivone. O gerente não lembrou quem era o tal Cardoso. Pela primeira vez o telefone dele tocou, mas ninguém atendeu. Decidiram procurá-lo no apartamento. O porteiro mal se lembrava quem era o cara do 402: "Ah, é um carequinha?".
A porta do 402 não estava trancada. No corredor, o crachá do banco caído no chão. O mau cheiro invadiu minhas narinas. O porteiro ficou na porta. Um sol estranho entrava pela janela da sala. A TV fora do ar. Vi uma poltrona e a orla de um roupão riscado. O desgraçado morreu de olho aberto e me encarava. Encostado na janela, chorei. Sem o paletó marrom, não soube dizer se aquele defunto era mesmo o Cardoso.