"Jamais saberei quem sou, até descobrir as histórias daqueles que vieram antes de mim".
Eu sempre percebi a maneira como ele me olhava. Antes achava que era coisa da minha cabeça. Tio Deco não tinha segredos comigo. Quando se é criança, os tios sempre são mais legais que os pais. Ainda mais um tio igual a ele - Carro legal, me botava no colo pra dirigir. E eu ia no volante dando pulinhos pra enxergar pelo parabrisas. Criança não vê maldade. O apartamento dele é que era legal. Mamãe me deixava passar uma semana das minhas férias. Tinha videogame, um aquário em cima da tv e microondas. Eu sentava num banco e ficava vendo o saco de pipocas girar e crescer. Uma vez quebrei um porta-retrato que tinha a foto de uma moça bonita, loira, que mandava beijos. Ele não brigou nem nada. Mas a tristeza que ele sentiu me deixou envergonhada. Nem pipoca quis aquele dia. Fiz até um cartão pedindo desculpas e ele sorriu.
Meu pai começou a reclamar da minha relação com tio Deco. Ficava vermelho de ciúmes quando me ouvia dizer que o tio Deco tinha me levado no parque, no cinema, me dado o disco que eu tanto queria. Na verdade, eu não me achava parecida com meu pai. Ele só pensava na empresa, em dinheiro, em vender. O jantar mais parecia uma reunião de negócios. Minha mãe concordava com olhos, com a cabeça, sem interesse. Já tio Deco não falava de trabalho quando estava comigo. Eu sabia que ele era fotógrafo, que viajava trazendo fotos e presentes do mundo inteiro. Já tinha prometido. Meu presente de 15 anos, uma viagem pra qualquer lugar do mundo.
Eu nunca disse pra ninguém, mas queria que tio Deco fosse meu pai.
Papai era o irmão mais velho. Quando vovô morreu, ficaram só ele e meu tio. A barra pesou pro lado do meu pai. Sem mãe, sem pai, tio Deco só tinha ele. Meu pai trabalhava de dia entregando documentos, fazendo serviço de banco, e estudava a noite pra terminar a faculdade. Nessa época, tio Deco fazia o ensino médio. Meu pai não o deixava trabalhar, dava conta do recado sozinho, pro Deco poder estudar e seguir os passos do irmão. Mas ele estava em outra.
Quando brigavam, meu tio ameaçava sair de casa e não voltar mais, girar o mundo, conhecer pessoas interessantes, esquecer que tinha irmão pra pegar no pé. Meu pai dizia que fosse, que quebrasse a cara, que nunca mais voltasse, mas depois da briga se trancava no quarto, chorando, com medo que tio Deco fosse de verdade. Não queria perder o que podia chamar de família.
Meu pai e minha mãe se conheceram e começaram a morar juntos e tio Deco continuava ali. Não era incomodo pra ninguém. Minha mãe o adorava: "que fofo o Dequinho, como irmão pra mim!". Meu pai ficava feliz em vê-los se dando bem. Eram de novo uma família.
Meu pai, agora formado, sustentava os dois. Minha mãe estudando e meu tio não queria saber de faculdade, "só por enquanto", dizia ao irmão pra acalmá-lo. Começou um curso de fotografia e viu que era sua praia. "É isso, mano, vou ser fotógrafo e dos bons!". Meu pai dizia que aquilo não era profissão de verdade, que fizesse faculdade como ele, como gente de bem, que sabe o que quer. Tio Deco não queria saber.
Minha mãe já não olhava meu tio como antes. Era diferente e ele sabia disso. Nada de olhar fraternal e ele sentia isso. Meu pai nunca soube o que acontecia com os dois quando ele saía pro trabalho. Nem eu posso pensar nisso.
O clima da casa mudou quando minha mãe contou que estava grávida. Sorria pro meu pai dizendo que era milagre, que a santa tinha ouvido suas preces! Meu pai que era estéril, achava muito milagre pra uma mulher que nem rezava. Meu tio já não era o mesmo. Não podia olhar nos olhos do meu pai e foi nesse tempo que ele mostrou as passagens pra São Paulo, "tentar a sorte na vida. Um amigo vai descolar uns trabalhos em uma revista, é pouca grana, mas é só o começo". E foi assim que a família se desfez.
Sempre achei meu pai um caretão. Tinha um pouco de vergonha dele. Queria um pai descolado como o tio Deco. Que pelo menos não fosse careca e que usasse um jeans de vez em quando. Nunca disse nada disso pra ele. As coisas começaram a prosperar pro meu tio em São Paulo. Fez faculdade de fotografia só pra orgulhar o irmão. As primeiras lembranças que tenho do meu tio são dessa fase, do apartamento legal e carro mais cheiroso que o do meu pai. E eu, segurando feliz aquele volante.
Eu tinha quase 15 anos quando tio Deco ficou doente. Foi a primeira vez que vi alguém com câncer, isso não era comum nos anos 80. Corremos pra São Paulo, mamãe e eu. Papai iria fim de semana, depois de resolver as coisas da empresa, sempre a empresa.
Ele estava magro e carequinha, me assustei quando o vi. Mesmo assim disfarcei e o abracei entregando o cartão que havia feito. Minha mãe deu um beijo carinhoso no seu rosto, e depois brigou com ele, "Doente há 4 meses, por que não avisou antes?". Ele chorava olhando pra mim e dizia que não queria incomodar meu pai que era tão ocupado, que a quimioterapia estava dando certo, que tudo daria certo. Fiquei olhando pras fotos na parede do escritório enquanto eles conversavam. A coleção de câmeras, o mapa mundi com alfinetes vermelhos em todos os países que ele havia fotografado, contei 22. Minha mãe chegou chorando, tio Deco queria conversar comigo no quarto, "Me perdoa, te amo muito".
Foi nessa tarde de sexta-feira que descobri, pelo meu tio, toda essa história da minha família. Meu tio chorava muito dizendo que amava meu pai, que amava minha mãe, e que me amava, não com amor de tio. Minha mãe entrou no quarto. Chorava muito também, eu estava em choque. "Seu pai nunca soube de nada, acreditou enfim no milagre da santa. Se você quiser contar a ele, é sua decisão".
Depois dessa conversa, meu tio respirava aliviado, estava sem fardo, sem espinho na carne. Segurando forte a minha mão, ele morreu naquela noite. Nunca pensei em vê-lo morrer assim. Peguei o telefone e liguei pra empresa, ele atendeu: "Alô, alô!", e eu chorava, soluçava. "O que aconteceu, quem está falando?", "Tio Deco acabou de morrer, preciso de você aqui, Papai!".